A Pandemia – Da crise económica dos trabalhadores à crise das famílias empresárias

As medidas anunciadas pelo Governo têm procurado defender as empresas, como importantes agentes económicos que são, essenciais à manutenção do sustento dos trabalhadores ao seu serviço e, consequentemente, das suas famílias. Sendo este desígnio absolutamente nobre, é igualmente curial refletir neste momento, em que a intensidade e extensão da crise correm o risco de mudar para sempre as narrativas sobre crises globais, sobre como preservar o património das famílias empresárias, donas das empresas que empregam os trabalhadores que também temos de proteger. E isto sabendo-se que a natureza familiar das empresas – muito típica do tecido empresarial português – nada tem que ver com a sua dimensão económico-financeira, mas antes com a estrutura acionista da sua organização. Aliás, temos em Portugal grupos económicos de grande envergadura cuja resiliência assenta, justamente, num projeto familiar que perpassa gerações.

Circunstâncias impactantes na atividade económica das empresas suscitam sempre discussões várias em torno do regime de responsabilidade vigente quanto aos grupos societários. É esse o ângulo deste artigo. Alguns poderão considerá-lo pouco “solidário” no contexto atual, mas muitos acompanharão a sua relevância.

Em Portugal, vigora no domínio das sociedades comerciais (contrariamente à prática empresarial a título individual) um princípio de responsabilidade limitada, em que as responsabilidades empresariais não têm impacto no restante património dos próprios empresários/acionistas. Numa perspetiva micro, o objetivo deste princípio é, perante o investimento e risco assumido com a iniciativa empresarial, garantir ao empresário a imunidade do seu património remanescente em face da possibilidade de sucumbência do seu negócio por qualquer desaire. Numa visão macro, essa limitação de responsabilidade é o que permite à economia pular e avançar de uma forma mais destemida, cabendo, naturalmente, aos agentes económicos e ao legislador regular os casos (e essa regulação existe) em que poderá haver um uso perverso da limitação da responsabilidade.

Estamos seguros de que o Covid-19 é uma circunstância externa aos negócios. São já antecipáveis longas discussões jurídicas em torno da alocação – entre agentes económicos e Estado – do risco associado aos efeitos resultantes da pandemia e das medidas tomadas para a sua mitigação. No caso concreto, porém, ressalta a questão de saber em que medida este risco externo pode afetar o património pessoal das famílias empresárias.

Nesse contexto e em primeiro lugar, face do recurso excessivo à figura das garantias pessoais (tais como avales, fianças, hipotecas sobre bens imóveis próprios ou penhor sobre outros bens, por exemplo de ações) por parte dos acionistas em função de exigências das suas contrapartes, principalmente instituições financeiras, é essencial aferir o nível de responsabilidades assumidas a título individual e que, em caso de insucesso da atividade empresarial, poderão ser acionadas.

Em segundo lugar, há que reter o facto de a lei estabelecer um regime de responsabilidade muito relevante quando estamos perante grupos societários em que existe uma relação de domínio. Long story short, uma sociedade que domine outra (ou seja, aquela que nalgum momento detenha 100% do capital social de outra sociedade) é responsável, independentemente de culpa na gestão e de forma ilimitada e solidária, pelas dívidas da(s) sociedade(s) por si dominada(s), direta ou indiretamente. Para tanto, bastará um atraso superior a 30 dias no cumprimento das obrigações pela “sociedade-filha”. A natureza desta responsabilidade, porque resulta de um preceito incluído no Código das Sociedades Comerciais, é legal e objetiva e não cessa ainda sociedade dominante venda a sua participação social na dominada. Cessará apenas para o futuro quando a participação da sociedade dominante desça do patamar dos 90% do correspondente capital social.

Ora, resulta do referido que este regime de responsabilidade apenas pode afetar sociedades em relação de domínio dito total, pelo que, aparentemente, o património individual dos seus acionistas estaria salvaguardado, dado que pessoas físicas não podem ser acionadas por aplicação deste regime. Porém, dado que há muitos grupos económicos se encontram estruturados a partir de uma mesma sociedade holding, que detém um conjunto de sociedades de carácter operacional a 100%, o património dessas holdings acaba por ser transversalmente afetado pela existência de uma responsabilidade a nível de qualquer sociedade operacional. Tal situação pode determinar, por exemplo, que uma certa área de negócio severamente afetada pela pandemia afete negativamente outras áreas de negócio mais saudáveis, por a responsabilidade da holding dominante poder convocar a execução da totalidade do seu património, o que inclui a sua participação social em todas as áreas de negócio desenvolvidas por sociedades operacionais, mais ou menos resilientes à crise. Urge, portanto, verificar dentro dos grupos económicos, por área de negócio e por sociedade participada, quais são os riscos de disseminação transversal da responsabilidade e reestruturar em conformidade.

Esperamos que, à semelhança de noutros momentos ocorridos na história, esta crise profunda seja inteiramente ultrapassada e se lhe siga uma fase de bonança, com estruturas mais fortes e robustas, o que implicará que os diferentes impactos com que hoje nos confrontamos sejam objeto de uma adequada ponderação.




Cristina Cabral Ribeiro, Managing Partner da CCR Legal
01-05-2020, In Expresso



Cristina Cabral Ribeiro, Managing Partner da CCR Legal